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Psicoterapia

Pensamento mágico. Pedro Martins Psicólogo clínico Psicoterapeuta

Pensamento Mágico

O termo pensamento mágico designa o pensamento que se apoia numa fantasia de omnipotência para criar uma realidade psíquica em que o indivíduo vivencia como “mais real” do que a realidade externa.

Quando falamos de pensamento, estamos sempre a referir-nos a pensamento e sentimento.

Este pensamento substitui a realidade externa actual por uma realidade inventada, mantendo assim a estrutura existente do mundo interno.

O pensamento mágico subverte a oportunidade de aprender a partir das experiências de vida com objetos externos reais.

O preço psicológico pago pelo indivíduo em virtude da sua crença no pensamento mágico é muito claro:

– O pensamento mágico não funciona, pois nada pode ser construído sobre ele a não ser outras camadas de construções mágicas.

O pensamento mágico tem apenas um objetivo: evitar enfrentar a verdade da própria experiência interna e externa.

O método utilizado para alcançar esse objectivo é o da criação de um estado mental em que o indivíduo acredita criar a realidade na qual ele e os outros vivem.

Nessas condições, a realidade psíquica oculta a realidade externa, a realidade não é a “da experiência, mas a do pensamento”.

Consequentemente, as surpresas emocionais e os encontros com o inesperado são, sempre que possível, recusados.

No limite, quando um indivíduo teme que a integridade do seu self esteja em perigo, pode defender-se por meio de fantasias omnipotentes que abrangem virtualmente tudo, desconectando-o da realidade externa, a tal ponto, que o seu pensamento se torna delirante e/ou alucinatório.

Nesse estado psicológico, ele torna-se incapaz de aprender a partir da própria experiência.

Na medida em que a realidade psíquica oculta a realidade externa, a capacidade do indivíduo de distinguir sonho e percepção, símbolo e simbolizado vai-se degradando progressivamente.

 

Ao substituir a realidade de facto por uma realidade inventada dilui-se a diferença entre realidades interna e externa.

 

Daí resulta que a própria consciência (consciência de si) seja comprometida ou perdida, o que, no quadro psicoterapêutico, leva a uma situação em que o paciente trata os seus pensamentos e sentimentos não como experiências subjectivas, mas como factos.

O pensamento mágico está por trás de muitas defesas psicológicas. A mania e a hipomania refletem a hegemonia de um conjunto de fantasias omnipotentes:

– Apoiado em defesas maníacas, o indivíduo sente que tem controlo absoluto sobre o objeto/outro que lhe falta, portanto, não o perdeu, mas rejeitou-o; não lastima, mas, antes, celebra a perda do objeto/outro porque está melhor sem ele.

Além do mais, essa perda deixa de ser uma perda, pois o objeto/outro não tem valor e é desprezível.

Os sentimentos associados a essas fantasias omnipotentes são muito bem resumidos por M. Klein (1935/1968), como sentimentos de controlo, desprezo e triunfo.

Todas as qualidades do pensamento mágico que acabámos de ver refletem o uso da fantasia de omnipotência para criar a ilusão – e, às vezes, o delírio – de que não se está sujeito às leis que se aplicam aos outros, o que inclui as leis da natureza, a inexorabilidade do tempo, o papel do acaso, a irreversibilidade da morte etc.

O pensamento mágico é muito conveniente – basta dizer algo para não ter de enfrentar a verdade do que ocorreu, e muito menos tomar qualquer atitude.

Contudo, por mais vantajoso que seja, há uma desvantagem primária: não “funciona” – nada pode ser construído sobre ou com ele, a não ser outras camadas de construções mágicas.

Este “pensamento” não tem força no mundo real, no que existe fora da mente da pessoa.

 

O pensamento torna-se cada vez mais uma ficção – uma invenção mágica da própria mente, uma construção dissociada da realidade externa.

 

Mais do que uma forma do pensamento genuíno, constitui um ataque tanto contra o reconhecimento da realidade quanto contra o próprio pensamento – ou seja, é uma forma de anti-pensamento.

Substitui a realidade de facto por uma realidade inventada, fazendo, assim, desmoronar a diferença entre realidades interna e externa.

A crença, por exemplo, de que se pode usar uma estratégia do tipo “perdoar e esquecer” indiscriminadamente nas experiências interpessoais acaba por cegar ainda mais o indivíduo não apenas em relação à realidade da natureza do vínculo emocional que existe entre ele e os outros, mas também em relação a quem ele mesmo é.

Torna-se cada vez mais uma ficção – uma invenção mágica da própria mente, uma construção dissociada da realidade externa.

Nada, nem ninguém pode ser construído sobre ou com um pensamento mágico porque à “realidade” criada de modo omnipotente falta a alteridade absoluta e imutável da realidade factual externa.

Ora, a experiência da alteridade da realidade externa é necessária para criar uma verdadeira experiência de si.

Sem não eu não pode haver eu. Sem um outro diferenciado, a pessoa é todo mundo e ninguém.

Uma implicação dessa compreensão do papel central do reconhecimento da alteridade no desenvolvimento do self é a ideia de que, se é muito importante que o terapeuta entenda o paciente, é igualmente importante que este seja uma pessoa diferente do paciente.

A última coisa de que qualquer paciente precisa é de uma segunda versão de si mesmo.

 

O pensamento mágico tem apenas um objetivo: evitar enfrentar a verdade da própria experiência interna e externa.

 

Uma paciente reduzida à sua omnipotência

Na entrevista inicial, para explicar porque me tinha procurado, a senhora S declarou: “Tenho um talento incrível para estragar tudo: o meu casamento, as relações com os meus filhos e a maneira como faço o meu trabalho”.

Apesar da ironia proposital da afirmação, achei que estivesse mais a gabar-se do que a admitir os seus fracassos ou a pedir ajuda. Senti que me estava a avisar que não era uma pessoa comum – “tenho um talento incrível”.

Na primeira semana de terapia ocorreu algo bastante surpreendente.

A senhora S deixou uma mensagem telefónica a avisar que os seus horários de trabalho tinham mudado e que só conseguiria chegar para a hora seguinte, ou seja, com uma hora de atraso.

A mensagem terminava assim: “se não me retornar, quer dizer que estamos combinados”.

Não tive outra opção a não ser ligar-lhe de volta.

Na minha mensagem, disse que a esperava na hora marcada, não depois.

Se não tivesse feito isso, ela teria chegado na mesma hora que o meu paciente seguinte. Se nós os três nos encontrássemos na sala de espera, teria ocorrido uma situação de intrusão.

A senhora S chegou vinte minutos atrasada à sessão cujo horário queria alterar.

Deu-me desculpas e explicações esfarrapadas.

Disse-lhe: “Acho que não acredita que lhe reservei um lugar de verdade aqui e que, portanto, sente que precisa de roubar um. Mas não penso que estas coisas possam ser roubadas”.

Eu desconfiava seriamente que a ansiedade de não ter um lugar próprio a acompanhava desde sempre, mas não lhe disse isso.

 

Mais do que uma forma do pensamento genuíno, constitui um ataque tanto contra o reconhecimento da realidade quanto contra o próprio pensamento.

 

Ela respondeu que não pensava que as coisas fossem assim tão complicadas e passou a falar-me dos acontecimentos no seu trabalho.

Disse-lhe: “Acha que não terei um lugar aqui com a senhora a não ser que eu lute para isso”. A paciente fez de conta que não ouviu nada.

Falava da própria vida de modo bastante irrefletido. A respeito da sua “juventude”, disse que tivera uma “infância perfeitamente normal” e que seus pais, universitários de sucesso, eram “perfeitamente razoáveis”. “Não posso culpá-los por tudo”.

Imaginava que a paciente estava certa, mas de um modo que ela estava longe de suspeitar.

Isto é, ela fora uma criança “perfeitamente” comportada – obediente e receosa das suas emoções -, e os seus pais foram “perfeitamente razoáveis”, no sentido de que eram pouco dados a receber ou a exprimir sentimentos. Essa inferência foi confirmada com o tempo nos relatos da paciente sobre a sua própria infância.

Os esforços da senhora S para me controlar e roubar, a mim e aos meus outros pacientes, estavam estreitamente ligados à sua crença de que eu tinha as respostas para os seus problemas – a incapacidade de ser mãe, esposa, amiga ou uma pessoa produtiva profissionalmente.

A minha “teimosia” em não lhe dar soluções para os problemas desnorteava-a tanto quanto a enfurecia.

Com o tempo, comecei a perceber que, desde o início da terapia, um aspecto estava a tornar-se cada vez menos disfarçado e mais provocatório na minha relação com a paciente.

Deturpava regularmente sentimentos e comportamentos assim como acontecimentos que ocorriam dentro ou fora do consultório.

Isso era mais visível quando distorcia alguma coisa que ela ou eu tínhamos dito durante a sessão em curso ou numa sessão recente.

 

No limite, quando um indivíduo teme que a integridade do seu self esteja em perigo, pode defender-se por meio de fantasias omnipotentes.

 

Depois de quase dois anos sentindo-me controlado desse modo, disse: “Penso que, apresentando a mim e a si todas estas histórias que sabe serem falsas ou enganadoramente incompletas, garante que tudo o que eu diga ou pense não tenha interesse ou valor para si. A realidade é apenas uma história que cria e recria como quer. Não há eu real ou você real que esteja fora do seu controle. Como pode criar qualquer realidade que lhe sirva, não precisa fazer realmente seja o que for para realizar as mudanças na sua vida que disse querer fazer”.

Enquanto dizia isso à senhora S, sentia-me zangado por ela estar a assolapar o trabalho terapêutico e a mim.

Também tinha consciência de que, ao salientar que não aprovava o modo como ela fazia o seu percurso, eu a forçaria, provavelmente, a entrar num estado ainda mais defensivo, o que, de facto, aconteceu.

Entretanto, não foi a minha zanga o que mais me perturbou nessa ocorrência, mas o facto de falar-lhe de um modo repreensivo, o que sentia como algo alheio a mim.

Numa sessão posterior fiquei subitamente ansioso, parecia não saber onde estava, quem estava comigo, o que estava a fazer. Senti-me desnorteado.

Levei uns segundos para deduzir onde estava, o que eu estava ali a fazer – ou seja, quem eu era. Minutos depois, esse pensamento dedutivo foi seguido de um sentido mais sólido de mim mesmo como pessoa e terapeuta da senhora S.

Com o tempo, essa experiência inquietante levou-me a tomar consciência do meu próprio medo de me perder na experiência psicológica e interpessoal em que a senhora S reinventava continuamente não apenas a realidade, mas também a ela mesma e a mim.

 

A realidade psíquica oculta a realidade externa. A realidade não é a “da experiência, mas a do pensamento”.

 

Pareceu-me que ela estava a mostrar o que não me conseguia dizer – ou dizer a si própria – ou seja, qual era a sensação de se inventar e reinventar e de ser inventada e reinventada por outra pessoa.

Isto fez-me lembrar a exigência dos pais da senhora S, bem como os próprios esforços para ser “uma criança perfeita”, que não exige nada emocionalmente dos pais, ou seja, uma criança que não é uma criança.

Disse à senhora S: “Creio que as suas distorções da realidade e particularmente as invenções a seu e a meu respeito são esforços para me mostrar o que não me consegue transmitir em palavras. Parece-me que, em criança, você sentiu que era a invenção da mente de outra pessoa e que continua a sentir-se assim. Acredito que tem tido medo de dizer a verdade a mim ou a si mesma porque isso ameaçaria o pouco de si mesma que sente como real. Dizer-me a verdade seria como abrir-se para que eu pudesse apossar-me o que sente ser e haver de mais real dentro de si e o substituísse com a minha própria versão de si”.

A senhora S não descartou com uma tirada sarcástica ou rejeição desdenhosa como costumava fazer. Antes, ficou quieta durante os poucos minutos que faltavam para o fim da sessão.

Na sessão do dia seguinte, a senhora S contou-me um sonho: “Estava a jogar ténis – na realidade não sei jogar ténis – e a bola rolou até um canto bem longe do complexo de campos onde estávamos a jogar. Naquele canto havia um recipiente cheio de bolas novinhas, mas não tinha maneira de levar mais do que uma ou duas. Não me consigo lembrar o que ocorreu depois. De manhã, quando acordei, sentia-me bem – nem óptima, nem péssima”.

 

O pensamento mágico subverte a oportunidade de aprender a partir das experiências de vida.

 

Eu disse-lhe: “Ao contar-me esse sonho começou a dizer a mim e a si mesma que, no sonho, estava a jogar ténis, mas que na realidade não sabe jogar. Pareceu-lhe importante que ambos saibamos o que é real e o que não é. A bola rolou até um canto afastado onde havia um recipiente cheio de bolas novas – parecia um tesouro atraente, mas só podia levar uma ou duas. No entanto, as bolas de ténis que você tinha já bastavam. Quando acordou, não se sentiu como quem perdeu um tesouro, nem como uma ladra, como costumava ocorrer antes. Você sentiu-se bem”.

Ela respondeu: “É verdade, não me importei mesmo por não poder levar as bolas todas. Não queria, não precisava delas. Encontrar as bolas não foi como descobrir um tesouro, apenas me pareceu estranho. Quando era pequena, ainda no colégio… numa loja roubei coisas que não precisava; assim que saí deitei-as fora. Sinto nojo quando me lembro disso. Mesmo sem precisar daquelas coisas, não consegui resistir”.

Durante o ano seguinte a essa sessão, a senhora S inventou muito menos a própria realidade. Às vezes, quando começava a distorcê-la, parava e dizia:

“Não adianta eu continuar a falar porque eu estou a deixar de lado uma parte importante do que aconteceu por vergonha de lhe contar”.

Nos trechos que comentei, a paciente estava profundamente arraigada no pensamento mágico que a levava a um esforço de inventar (e destruir) realidades dela mesma e as minhas.

Para ela, a alternativa de inventar realidade não era apenas uma experiência de desamparo, mas um sentimento de perda de si mesma, um sentimento de que estava a ser roubada por alguém.

 

Trata-se de um pensamento que se apoia numa fantasia de omnipotência para criar uma realidade psíquica em que o indivíduo vivencia como “mais real” do que a realidade externa.

 

As distorções da realidade da paciente – a criação mágica da própria realidade – irritaram-me, uma vez que contribuíam para o que parecia um roubo da significação do diálogo terapêutico e um roubo do meu sentido de self.

No início, eu disse à paciente que o seu pensamento mágico era excessivamente acusador e, consequentemente, inútil para ela.

Contudo, útil para mim, uma vez que me alertou para o facto de que ela não me reconhecia na maneira como lhe tinha falado.

O facto de falar com a senhora S sobre o que acreditava ser os seus sentimentos de perder-se nas suas infinitas reinvenções da realidade ofereceu-nos um contexto emocional – modo continente de pensar – que permitiu a ela e a mim sonhar com uma experiência de ela ser ela mesma no mundo sem necessidade de magia.

Tanto no sonho como nas conversas comigo sobre as bolas de ténis, a paciente foi capaz de se aceitar tal como era. A realidade não era uma ameaça; serviu de alteridade fundadora.

A minha alteridade e a da realidade externa tornaram-se imediatamente mais presentes quando lhe “recontei” o sonho com as bolas de ténis de maneira diferente da dela.

Ao ouvir-me contar o sonho, acredito, a senhora S viu algo como ela mesma – ela mesma a uma distância considerável – no “meu sonho”.

Serviu-se da realidade externa – da alteridade – da minha versão do sonho, como revelou ao corrigir tranquilamente a minha versão quando não se reconhecia nele.

Por exemplo, disse que encontrar todas essas bolas de ténis “não era como descobrir um tesouro”; antes achou “estranho” – isto é, alheio à pessoa que ela estava a tornar-se.

 

Traduzido/adaptado por Pedro Martins a partir de “On three ways of thought: magical thinking, dream-like thinking and transformative thinking – Thomas H. Ogden

Identificação Projectiva. Pedro Martins - Psicólogo Clínico Psicoterapeuta

Identificação Projectiva

Em situações desconfortáveis com outra pessoa, por vezes é difícil saber de onde vem o desconforto, de nós ou do outro.

Quem nunca passou pela experiência de ter de lidar com alguém que receia? Não estamos a falar de uma pessoa que seja abertamente ofensiva.

Referimo-nos ao tipo de interacção em que pode não haver um problema ou conflito óbvio, mas, ainda assim, faz com que uma pessoa se sinta desconfortável e ansiosa.

Não podemos apontar a causa, tornando-a ainda mais inquietante.

Podemos deixar de agir como agimos de costume. É difícil, senão mesmo impossível, encontrar uma saída construtiva para estas situações incómodas.

A psicanálise tem vários conceitos para descrever esta situação. Um deles chama-se “identificação projectiva”.

A identificação projectiva foi descrita pela primeira vez pela psicanalista Melanie Klein.

Funciona assim: a pessoa A tem um sentimento que prefere evitar, e por isso projecta-o, inconscientemente, na pessoa B.

Muitas vezes, a projecção falha, porque a outra pessoa “recusa-se a aceitar” a projecção.

Contudo, em alguns casos, a pessoa B ressoa, ou de alguma forma identifica-se com a projecção da pessoa A e acaba por agir ou sentir de forma a combinar a projecção (a projecção da pessoa A com os sentimentos da pessoa B). Então temos a Identificação Projectiva.

 

Um exemplo:

Vera é uma personal trainer de sucesso que adora o seu trabalho. Ela tem ajudado inúmeras pessoas a atingir os seus objectivos. O seu novo aluno, Tomás, quer perder peso e aumentar a força muscular.

Após o primeiro treino, Tomás enviou várias mensagens a Vera. Ela respondeu-lhe mas sentiu-se um pouco sobrecarregada com a sua necessidade de atenção.

No segundo treino, Tomás apareceu amuado. Para além disso, não tinha feito nenhuma das mudanças que Vera sugeriu.

 

Quando se sentir repetidamente inquieto e mal sucedido na gestão de uma situação interpessoal, dê um passo atrás para pensar de onde vem esse sentimento.

 

Vera considerou a falta de entusiasmo de Tomás frustrante. Ela tinha tendência para se culpar se os alunos não melhoravam, perguntando-se se estaria a fazer algo de errado.

Durante o segundo treino, teve uma sensação de desconforto: Ela desejava que o treino terminasse rapidamente. Tentou ignorar a sensação e encorajou Tomás a manter o bom trabalho.

Mais tarde, recebeu um longo texto onde Tomás referia que não achava que os treinos estavam a ajudar, e sentia que Vera o “via apenas como uma fonte de rendimento” e que queria trabalhar com outra pessoa.

Vera pensou se olhava para os seus alunos como uma fonte de rendimento; sentimentos e pensamentos que normalmente não tinha com outros alunos.

Sentia-se confusa, não sabia o que estava a correr mal com Tomás, e tinha dúvidas sobre a sua própria forma de agir.

 

Poderá este ser um caso de identificação projectiva?

Vamos analisar os vários passos.

Primeiro passo: Nomear a emoção

Vera disse ao seu terapeuta: “Sinto que não consigo fazer nada bem”. Este é o primeiro passo.

No entanto, muitas vezes, não prestamos atenção aos sentimentos desconfortáveis à medida que eles acontecem.

Em vez de percebermos que estamos ansiosos ou frustrados, podemos perder a calma com o aluno, sentir um aperto no estômago ou uma tensão no pescoço “sem motivo”. Se nos sentirmos mal, devemos parar e reflectir.

 

Segundo passo: Aceite os sentimentos e não se julgue a si próprio

Dê a si próprio a liberdade de contactar com os seus sentimentos, sejam eles quais forem.

Isto pode ser difícil, especialmente se um certo sentimento não se encaixar com a forma como gosta de se ver a si próprio.

Por exemplo, pessoas motivadas para ajudar os outros, orgulham-se de se sentirem úteis.

 

A identificação projectiva foi descrita pela primeira vez pela psicanalista Melanie Klein.

 

Se essa pessoa tiver uma experiência negativa ao tentar ajudar alguém, poderá negar ou afastar esses maus sentimentos.

Vera sentiu-se mal consigo própria por não ter desfrutado do tempo com o seu aluno. “Uma treinadora verdadeiramente dedicada não deveria sentir-se assim”, pensou ela.

A terapeuta de Vera disse-lhe que não era uma pessoa má por ter a sensação de que não queria ajudar Tomás.

Quando deixou de se julgar a si mesma, foi capaz de compreender a sua própria experiência e perceber melhor que Tomás projectava nela os seus sentimentos de carência e baixa autoestima.

 

Terceiro passo: Sentimentos são um conjunto de informações sobre uma pessoa

Depois de nomear os seus sentimentos e deixar de se julgar, pode perguntar: “O que é que este sentimento me diz”?

Simplificando, o sentimento surgiu numa interacção entre você e outra pessoa. Contém informações sobre si, mas também sobre a outra pessoa. Estes dados são valiosos.

Vera afastou-se do sentimento de que não fazia nada bem e depois apercebeu-se de algo muito importante.

O que ela estava a sentir sobre si própria reflectia na realidade o que Tomás sentia sobre ele próprio: indesejável, sem esperança, e duvidando das suas próprias motivações.

Ou seja, um caso de identificação projectiva.

À medida que Vera identificava e aceitava os seus sentimentos e considerava a informação recolhida, deixou de se sentir perturbada e defensiva.

 

É muito importante prestarmos atenção aos sentimentos desconfortáveis à medida que eles acontecem.

 

Ela foi, então, capaz de compreender e ajudar Tomás da forma que ele precisava, mas não tinha consciência ou não conseguia comunicar ou pedir directamente.

Vera enviou uma mensagem a Tomás para marcar uma reunião. Ao conhecê-lo melhor, percebeu que ele não queria apenas perder peso e aumentar a sua força muscular.

Ele também se sentia bastante em baixo com a sua aparência. O que Tomás realmente queria, mas não podia ou não sabia como dizer, era sentir-se atraente e confiante na sua vida amorosa.

Uma vez que Vera compreendeu isso, Tomás sentiu-se compreendido, e foi capaz de seguir os seus conselhos sem necessidade de expressar inconscientemente a sua baixa autoestima através da identificação projectiva.

Resumindo, quando se sentir repetidamente inquieto e mal sucedido na gestão de uma situação interpessoal, dê um passo atrás para pensar de onde vem esse sentimento. Pode não se tratar algo que surge, necessariamente, apenas de si.

Traduzido/adaptado por Pedro Martins a partir de: Understanding Boundaries: What is Projective Identification – John K. Burton

Adoecer Mentalmente. Pedro Martins Psicólogo Clínico Psicoterapeuta

Adoecer Mentalmente

Adoecer Mentalmente: Durante bastante tempo podemos conseguir lidar suficientemente bem com as coisas.

Conseguimos ir trabalhar todas as manhãs, falamos das coisas agradáveis das nossas vidas aos amigos e divertimo-nos durante um jantar.

Não somos completamente equilibrados, mas há poucas maneiras de saber que as coisas são igualmente difíceis para as outras pessoas, e o que temos direito de esperar em termos de contentamento e paz de espírito.

Provavelmente, dizemos a nós próprios para deixarmos de ser auto complacentes e redobrarmos os nossos esforços para nos sentirmos bem, e nos valorizarmos através das nossas realizações.

Presumivelmente, somos especialistas mundiais em não sentir compaixão por nós próprios.

Nós podemos passar décadas nisto.

Não é raro que as condições mentais mais graves permaneçam sem diagnóstico durante muito tempo.

Simplesmente não notamos que por baixo da superfície estamos mentalmente doentes: cronicamente ansiosos, com uma enorme autoaversão e muito perto do desespero e de uma raiva avassaladora.

Isto também acaba, simplesmente, por ser sentido como normal.

Até que um dia, expectavelmente, algo desencadeia um colapso.

Pode ser uma crise no trabalho, uma inversão nos nossos planos de carreira ou um erro que cometemos.

Pode ser uma desilusão amorosa, alguém que nos deixa, ou uma percepção de que estamos profundamente insatisfeitos com um parceiro com quem pensávamos ficar.

Sentimo-nos misteriosamente exaustos e tristes, a ponto de já não conseguirmos enfrentar nada, nem mesmo uma refeição em família ou uma conversa com um amigo.

Podemos ser atingidos por uma ansiedade incontrolável em torno dos desafios diários, como falar com os nossos colegas de trabalho ou ir a uma loja.

Ficamos atolados numa sensação de desgraça e de catástrofe iminente.

Estamos mentalmente doentes e, com sorte, saberemos erguer imediatamente a bandeira branca e rendermo-nos

 

A nossa doença está a tentar chamar à atenção para os nossos problemas, mas só o pode fazer de forma desarticulada, apresentando sintomas grosseiros e vagos. Diz-nos que estamos preocupados e tristes, mas não nos pode dizer com o quê e porquê.

 

Não há nada de vergonhoso ou raro no nosso estado; adoecemos, como tantos outros antes de nós.

Não é preciso agravar a nossa doença com um sentimento de vergonha.

Isto é o que acontece aos humanos perante as condições dolorosas, alarmantes e sempre incertas da existência.

A recuperação pode começar no momento em que se admite que já não se tem a menor ideia de como lidar com a doença.

As raízes da crise remontam, quase de certeza, a um tempo distante.

As coisas não terão estado bem em certas áreas durante muito tempo, possivelmente, desde sempre.

Provavelmente, passámos por graves insuficiências nos primeiros tempos.

Disseram-nos e fizeram-nos coisas que nunca deveriam ter ocorrido, e momentos de tranquilidade e cuidado que foram desafortunadamente perdidos.

Para além disto, a vida adulta terá apresentado dificuldades para as quais não estávamos bem equipados para suportar.

 A nossa doença está a tentar chamar à atenção para os nossos problemas, mas só o pode fazer de forma desarticulada, apresentando sintomas grosseiros e vagos.

Diz-nos que estamos preocupados e tristes, mas não nos pode dizer com o quê e porquê.

Esse será o trabalho de investigação do paciente, ao longo de meses ou anos, provavelmente, na companhia de um psicoterapeuta.

A doença contém a cura, mas tem de ser explorada e a sua desarticulação original tem de ser interpretada.

Algo do nosso passado clama por ser reconhecido – e não nos deixará em paz até que lhe tenhamos dado o devido valor.

Em certos momentos pode parecer-nos uma sentença de morte, mas é-nos dada, através da crise, uma oportunidade para finalmente ousarmos ouvir o que a nossa dor nos tenta dizer, e de recomeçarmos as nossas vidas numa base mais compassiva e realista.

 

Traduzido/adaptado por Pedro Martins

a partir de: Falling mentally ill – Alain de Botton

O Perfeccionismo - Pedro Martins Psicólogo Clínico / Psicoterapeuta

O Perfeccionismo

Segundo Stoeber (2014), o perfeccionismo é caracterizado por padrões de exigência extremamente elevados, acompanhado por uma tendência a ser muito crítico nas avaliações.

Esta disposição reflete-se principalmente no desempenho escolar/académico e no trabalho, mas também na aparência física.

Hollender definiu o perfeccionismo como o hábito de exigir a si próprio e aos outros um elevado grau de desempenho; maior do que o requerido pela situação.

O perfeccionismo é a tendência para estabelecer elevados padrões pessoais de desempenho juntamente com uma avaliação excessivamente crítica desse desempenho e um enorme medo de errar.

 

Perfeccionismo e Psicopatologia

A necessidade de ser perfeito ou de ser visto como perfeito pelos outros é um factor de risco para a saúde mental.

Tem sido associado à depressão, às perturbações de ansiedade, às perturbações obsessivo-compulsivas e aos distúrbios do comportamento alimentar.

As pessoas perfeccionistas esforçam-se desmesuradamente para serem perfeitas e evitar o erro, que é sentido como catastrófico.

A marca indelével deixada pelo erro contribui para a formação de um sentimento negativo sobre si mesmo. Uma baixa autoestima ou a sua diminuição pode gerar sintomas depressivos.

Inúmeros estudos encontram uma correlação significativa entre perfeccionismo e depressão.

No perfeccionista o medo de falhar gera uma enorme ansiedade no desempenho das tarefas. Quanto mais importante e investida a tarefa maior a ansiedade.

Boivin e Marchand (1996) referem que o perfeccionismo está associado a várias perturbações de ansiedade.

O resultado de vários estudos indica que o perfeccionismo afecta diretamente a ansiedade, ou seja, um maior nível de perfeccionismo gera um maior nível de ansiedade.

Guidano e Liotti (1983) sugeriram que o perfeccionismo constitui um dos traços fundamentais para o desenvolvimento da perturbação obsessiva- compulsiva nos indivíduos com personalidade obsessiva.

 

A necessidade de ser perfeito ou de ser visto como perfeito pelos outros é um factor de risco para a saúde mental.

 

O funcionamento mental do obsessivo-compulsivo organiza-se em torno de certas crenças que se caraterizam por aspetos perfeccionistas, necessidade de certezas e a convicção de que existe uma solução perfeita.

O perfeccionismo tem sido associado à perturbação obsessivo-compulsiva, na medida em que o sujeito obsessivo-compulsivo tende a apresentar um ideal de perfeição em todas as áreas da sua vida.

O sujeito obsessivo-compulsivo tem dificuldade em suportar as incertezas e por consequência, tenta eliminá-las através de um comportamento compulsivo.

A crença destes sujeitos baseia-se no facto de que, não cometendo erros, evitam a crítica – tão difícil de suportar.

O perfeccionismo também tem sido associado às perturbações do comportamento alimentar (Shafran et al., 2002), tendo um papel importante na sua patogénese, manutenção e resposta ao tratamento.

Um estudo de Forbush et al. (2007), com amostra de 2482 sujeitos mostrou uma relação significativa entre o perfeccionismo e os distúrbios alimentares, particularmente, a Anorexia Nervosa e a Bulimia.

Outro estudo de Teixeira (2008) com 1465 adolescentes e jovens adultos, com idades compreendidas entre os 14 e os 20 anos que pretendia avaliar a relação entre perfeccionismo e as atitudes e comportamentos alimentares mostrou que os adolescentes que apresentavam resultados mais elevados no Teste de Atitudes Alimentares eram também os que apresentavam pontuações mais altas nos níveis de perfeccionismo.

 

O perfeccionista procura exteriormente, através do seu desempenho, uma validação que não encontra interiormente.

 

Os perfeccionistas adotam um estilo de vida marcado por um esforço intenso, persistente e compulsivo para atingir metas dificilmente atingíveis, acompanhado por autoavaliações excessivamente críticas e severas, procurando valorização através do seu desempenho.

Devido à insuficiência narcísica  perfeccionista procura exteriormente, através do seu desempenho, uma validação que não encontra internamente.

Por mais perfeito que seja, jamais alcança esse sentimento interno de que é bom o suficiente para o outro.

Daí ter uma grande dificuldade de diminuir o grau de exigência que impõe a si mesmo.

Ao mesmo tempo, pode ficar enfurecido com aquele que não se rege pelos mesmos níveis (desproporcionados) de exigência.

A liberdade e a descontração do outro são sentidas como um ataque a quem é escravo do perfeccionismo e do qual não se consegue libertar.

Enquanto não conseguir fontes internas de valorização o perfeccionista não é dono e senhor de si próprio.

Rutura e Reparação - Pedro Martins Psicólogo Clínico Psicoterapeuta

Rutura e Reparação

Muitas tensões nos relacionamentos podem ser úteis se olhadas à luz de um conceito muito empregue em psicoterapia: ‘Ruptura’ e ‘Reparação’

Para os psicoterapeutas, todas as relações estão sujeitas a momentos de frustração ou como o termo indica, de ‘rutura’:

– quando perdemos a confiança na outra pessoa como alguém em quem podemos depositar com segurança o nosso amor, e que acreditamos, possa ser amável e compreender as nossas necessidades.

 

Normalmente, as ruturas são pequenas, e para quem vê de fora quase imperceptíveis:

– Uma pessoa não responde calorosamente à saudação da outra

– Alguém tenta explicar uma ideia ao companheiro e este encolhe os ombros e diz sem rodeios que não faz ideia do que se está a falar

– Em frente dos amigos, o companheiro faz uma piada que coloca a parceira numa situação embaraçosa

Ou a rutura pode ser mais séria:

– Alguém chama estúpido a alguém e dá um pontapé numa porta

– O aniversário do companheiro é esquecido

– Um caso extraconjugal

 

Um dos aspectos das ruturas é que elas – em si mesmas – nada dizem sobre as perspetivas de sobrevivência de uma relação.

Podem dar-se ruturas bastante graves e constantes sem rompimento da relação.

Ou pode haver um ou dois momentos de tensão por causa de uma pequena discordância – e as coisas vão em direcção à derrocada.

O que determina a diferença é algo que os psicoterapeutas estão especialmente interessados em ensinar-nos:

A capacidade para o que eles chamam “reparação”.

A reparação refere-se ao trabalho necessário para que duas pessoas recuperarem a confiança uma na outra.

E ao mesmo tempo, restaurem a sua imagem na mente do outro como alguém que é essencialmente decente e simpático e que pode ser um intérprete “suficientemente bom” das necessidades do companheiro.

 

Para os psicoterapeutas, todas as relações estão sujeitas a momentos de frustração ou como o termo indica, de ‘rutura’

 

Como a psicoterapia salienta, a reparação não é apenas uma capacidade entre outras, é sem dúvida o determinante central da maturidade emocional de cada um; é o que nos identifica como verdadeiros adultos.

 

A boa reparação depende de pelo menos quatro capacidades:

 

  1. A capacidade de pedir desculpa

Um pedido de desculpa pode não ser tão fácil como parece, pois não são apenas algumas palavras calorosas que se tem de dizer, o verdadeiro custo é para o amor-próprio da pessoa.

Se alguém já está perto de não se sentir bem consigo mesmo, então o apelo a admitir mais alguma coisa – assumir ser ainda mais controlador, emocionalmente desequilibrado, temperamental ou vaidoso – pode parecer uma exigência demasiado grande.

Podemos optar por cavar um fosso maior e não mostrar arrependimento, não por estarmos muito satisfeitos connosco próprios, mas precisamente porque a nossa falha nos parece tão dolorosamente óbvia – e não nos dá confiança para imaginarmos que um pedido nosso de desculpas poderia despertar no outro o tipo de paciência e bondade que desejamos – e, ainda assim, sentimos que não merecemos.

 

  1. A Capacidade de Perdoar

Também pode haver dificuldade em aceitar um pedido de desculpas.

Para o fazermos, temos de compreender que pessoas boas (o que nos inclui) podem acabar por fazer coisas muito más – não porque sejam “más”, mas porque estão esgotadas ou tristes, preocupadas ou abatidas.

Uma perspectiva compreensiva dá-nos o ímpeto para procurar as razões mais generosas pelas quais pessoas fundamentalmente boas se podem comportar muito mal em certos momentos.

Quando este tipo de perdão parece impossível, os terapeutas falam de uma manobra da mente conhecida como “clivagem”, uma tendência para declarar algumas pessoas como sendo inteiramente boas e outras, tão simplesmente, completamente horríveis.

 

A boa reparação depende de pelo menos quatro capacidades: pedir desculpa, perdoar, ensinar e aprender.

 

Ao dividir a humanidade desta forma, protegemo-nos de sentir os desapontamentos inevitáveis ou a ambivalência adulta.

Ou alguém é puro e perfeito e podemos amá-lo sem reservas ou – de repente – são terríveis e nunca poderemos perdoá-los.

Agarramo-nos à rutura porque ela confirma uma história que, embora profundamente triste a um certo nível, também parece muito segura:

– Que os grandes compromissos emocionais são invariavelmente muito arriscados, que não se pode confiar nos outros, que a esperança é uma ilusão – e que estamos basicamente sozinhos.

 

  1. A capacidade de ensinar

Por detrás de uma rutura reside frequentemente uma tentativa falhada de uma pessoa “ensinar” algo a outra.

Estavam a tentar transmitir algo quando perderam a calma ou ficaram amuados:

Por exemplo, algo sobre como estar junto de outros membros da família, o que fazer no que diz respeito ao sexo, a educação dos filhos ou como lidar com o dinheiro.

No entanto, o esforço correu mal e a arte de bem ensinar foi esquecida, uma arte que se baseia, surpreendentemente, num grau de pessimismo sobre a capacidade da outra pessoa para compreender o que queremos dela.

Os bons professores não estão à procura de resultados miraculosos. Eles sabem como a mente humana pode ser resistente a novas ideias.

Engolem uma dose muito grande de pessimismo sobre uma comunicação interpessoal bem-sucedida, de modo a manterem-se calmos e de bom humor em torno das inevitáveis frustrações nas relações.

Não gritam porque, desde o início, não acreditaram em simetrias totais da mente.

Quando tentam transmitir algo, não pressionam demasiado. Dão tempo ao seu ouvinte e conhecem a defensividade – e, como alternativa, aceitam que podem ter de respeitar duas realidades diferentes.

No final, eles podem suportar e aceitar que serão sempre um pouco incompreendidos mesmo por alguém que os ame muito.

 

A reparação é o determinante central da maturidade emocional de cada um; é o que nos identifica como verdadeiros adultos.

 

  1. A capacidade de aprender

Pode parecer muito mais fácil ficar ofendido com alguém do que ousar imaginar que ele pode ter algo importante para nos dizer.

Podemos preferir ficar presos à forma como eles nos comunicaram algo, em vez de abordar a substância do que estão a tentar transmitir.

Não é fácil reconhecer que ainda somos principiantes numa série de áreas.

“O bom reparador” é, em última análise, um bom aprendiz: ele tem plena consciência do quanto ainda lhe falta aprender e não se sente humilhado com isso.

Não é uma surpresa ou um motivo de alarme que alguém possa criticar.

É apenas um sinal de que uma alma bondosa está suficientemente investida no seu desenvolvimento para ver áreas de imaturidade – e, na segurança de uma relação, oferecer algo com que quase ninguém de outro modo se incomodaria: feedback.

 

Na tradição japonesa dos Kintsugi, os potes e os vasos partidos são artisticamente consertados usando uma laca misturada com pó de ouro e exibidos como obras de arte preciosas, como forma de enfatizar a dignidade e a importância da arte de reparar.

Devíamos fazer algo parecido com as nossas histórias de amor.

É bom ter uma relação sem momentos de rutura, sem dúvida, mas é uma grande conquista e de enorme nobreza saber reparar as coisas amiúde com aqueles fios preciosos de ouro emocional: autoaceitação, paciência, humildade, coragem e muita ternura.

Traduzido/adaptado por Pedro Martins a partir de

Rupture and Repair- Alain de Botton

Patologia Narcísica - Pedro Martins Psicólogo Clínico Psicoterapeuta

Patologia Narcísica

Quando a mãe não é suficientemente boa, não ocorre a idealização do Eu, comprometendo ou impedindo a formação de um ideal do Eu.

Nestes casos o indivíduo não pode reagir de uma maneira interna, pelo que a sua autoestima, o seu sentimento de integridade vai depender dos outros, de algo exterior.

Assim na patologia narcísica a regulação da auto-estima continua a ser obtida através dos outros/exterior que, pela identificação projectiva, recebem essa função por delegação e, pela identificação introjectiva, ocuparão provisoriamente o lugar que deveria ocupar a estrutura interna.

A insegurança e os sentimentos de inferioridade que o próprio sente impedem-no de se auto valorizar, procurando a valorização através do exterior.

Somente com a formação de um ideal do Eu suficientemente estável está assegurado o narcisismo indispensável.

Assim, consideramos que narcísico é aquele que não teve, na relação com a mãe o espaço para se ver como uno.

Foi vivenciado como um pendente, um projecto da mesma, conferindo-lhe um sentimento de que não possui vida própria e independente.

Anulado na sua existência, tornou-se servo do outro com quem aprendeu que deve satisfazer e não desiludir.

Não se conheceu através do outro, não se reconhece sem ele. Vivencia com estranheza o seu corpo e os seus sentimentos, sente-se incompleto.

Projecto de uma mãe que não reconheceu as suas qualidades e de um pai que permitiu que permanecesse uma ligação fusional à mãe.

Filho de pais cujos desejos correspondem à recusa de dependência do filho bebé, porque lhes desencadeia ansiedades intoleráveis e porque exigem que o filho seja a perfeição (omnipotente), de modo a reflectir a própria imagem de perfeição dos pais narcísicos.

 

Não amado e não reconhecido no seu valor, o indivíduo passa a adoptar condutas de compensação que possibilitem o disfarce da imagem de inferioridade que tem de si próprio.

 

O narcísico impede-se de olhar para o seu interior e passa, de forma maníaca, a mascarar a sua ferida, escondendo-se no exterior e por detrás de um ideal do Eu, impessoal e megalómano, que face ao menor desequilíbrio se despenha num precipício de inferioridade e vergonha.

Quando a perda do amor do outro ocorre precocemente durante a fase de formação da auto-imagem como pessoa, durante o processo de narcisação primária, desencadeia uma tendência mais depressiva em que a imagem que o sujeito tem de si é, de um modo generalizado, negativa.

O indivíduo tem uma autoestima baixa relativamente a todo o seu desempenho.

O sujeito que ao longo do seu desenvolvimento não se sentiu valorizado estabelecerá relações amorosas que lhe permitam a ilusão de possuir uma autoestima verdadeira e de libertação dos seus sentimentos de auto-desvalorização.

O facto de ter sido amado parcialmente faz com que se ligue ao outro de modo parcial, estabelecendo relações bidimensionais baseadas em processos primários onde o que interessa são os aspectos exteriores e não a pessoa em si.

 

Na patologia narcísica a autoestima é regulada através dos outros e não pelo próprio.

 

Em termos de resumo podemos dizer que não amado e não reconhecido no seu valor, o indivíduo passa a adoptar condutas de compensação que possibilitem o disfarce da imagem de inferioridade que tem de si próprio.

Passa então, a rodear-se de pessoas que lhe conferem a ilusão mágica de “eu sou o que tenho”, possibilitando a criação de estratégias de sedução que serão tanto mais eficazes quanto se rodeie de pessoas deslumbrantes.

O indivíduo sente que para afirmar o se Eu necessita compulsivamente de possuir e ganhar poder.

Num exibicionismo contínuo que cria a ilusão de unicidade e exclusividade, acrescentando ao próprio o sentimento de que é importante.

No nosso entender o narcísico é alguém que procura através da ligação com o outro, um auto-reconhecimento e a aquisição de um sentimento de existência, que não conseguiu com os cuidadores/pais.

Considera-se que o narcísico tem uma imagem desvalida de si, procurando na ligação ao outro atingir a identificação ao Ideal do Eu, não investindo o outro, mas sim a imagem grandiosa que julga poder obter através dessa ligação.

A ligação ao outro processa-se de forma maníaca evidenciando uma tríade de sentimentos:

controle, desprezo e poder, permitindo que o indivíduo se coloque numa posição de destaque, eliminando a inveja e a competição.

Pedro Martins

O desejo de agradar quando conhecemos alguém - Pedro Martins Psicólogo Clínico Psicoterapeuta

O desejo de agradar

Quando conhecemos alguém por quem nos sentimos atraídos temos o forte desejo de agradar.

E, com naturalidade, assumimos que a melhor forma de o fazer é mostrar repetidamente o quanto estamos em sintonia com as suas opiniões e escolhas.

Nos primeiros encontros, quando por acaso mencionam que adoram dançar, mostraremos, portanto, que também gostamos muito.

Ou quando referem que acham os museus aborrecidos, esconderemos que numa viagem a Madrid no ano passado, passamos um dia encantador no Museu do Prado.

Podemos não estar a mentir, mas estamos a esticar e a dobrar a verdade até aos seus limites, de modo a criar uma sensação de entendimento quase total.

A nosso desejo de agradar pode atingir o auge em torno do sexo:

Não podemos, naturalmente, arriscar-nos a introduzi-los nos caminhos reais da nossa imaginação erótica. Apenas afirmamos querer (por milagre) exactamente o que eles querem.

Ao longo do caminho, raramente nos ocorre que eles possam estar a fazer o mesmo connosco.

Ou seja, que também estejam a ajustar a sua auto-apresentação de formas subtis mas poderosas, para se adaptarem ao que consideram ser as nossas preferências e valores.

Há um aspecto tragicómico no aprofundamento da nossa atracção mútua.

Duas pessoas sérias estão a tentar ser tão simpáticas quanto podem.

Ninguém está a tentar enganar e, no entanto, gradualmente, um conjunto de ideias extremamente enganadoras e perigosas sobre quem cada pessoa realmente é, estão a formar-se.

O nosso enorme desejo de agradar pode encorajar-nos a viver juntos e, mais tarde, em casar.

E, então – inevitavelmente – o escrutínio prolongado e íntimo revelará a escala das nossas expectativas equivocadas.

Desilusão após desilusão, cada um de nós ficará triste, desapontado e chocado ao descobrir com quem nos juntámos.

 

Quando nos sentimos atraídos temos o forte desejo de agradar e assumimos que a melhor forma de o fazer é mostrar que temos os mesmos gostos

 

Surgirão recriminações, discussões e reconciliações frágeis, até que, uma das partes chegue à triste conclusão, mas ainda assim surpreendente, de que nunca existiu compatibilidade.

Também podemos ignorar isso e continuar numa crescente infelicidade.

As férias jamais envolverão visitas aos museus que tanto gostamos.

Teremos de nos resignar a nunca termos tido o tipo de sexo que desejamos.

Ou, ainda mais grave, acabaremos por embarcar numa vida dissimulada; aproveitaremos os momentos em que eles estão longe para perseguir necessidades que fingimos não ter.

Até que um dia a nossa vida dupla seja exposta – e afogar-nos-emos em amargura, fúria, tristeza e arrependimento.

No entanto, na origem de tais pesadelos esteva apenas um enternecedor, mas arriscado e dolorosamente falhado, desejo de estabelecer uma combinação perfeita.

Queríamos simplificar, mas acabámos por criar com uma enorme confusão.

Uma abordagem verdadeiramente mais simples deve ser algo complexa desde o início.

Quando surge o tema da dança, o sensato é dizer imediatamente que não gostamos de dançar.

Em relação aos museus devemos afirmar com franqueza a paixão por esses espaços.

Quando se trata das rotinas e gostos, devemos ousar mencionar o prazer que temos numa cozinha muito bem limpa e arrumada ou explicar que precisamos de uma hora para realmente acordar.

Não há necessidade de ser petulante ou exigente. E não há nenhuma exigência de que o nosso par esteja de acordo ou que tenha de ficar para além da sobremesa.

Alguns fugirão, e é melhor que fujam.

 

Ser sincero nos encontros amorosos é uma forma de duas pessoas não perderem tempo e pouparem-se a previsíveis desgostos

 

A fim de revelar as nossas verdades, precisamos de um sentido básico de aceitação.

Temos de saber que não somos perfeitos, mas isso não nos torna desprezíveis ou vergonhosos.

A nossa atitude em relação à cozinha pode ser um pouco excessiva sem ser doentia.

O nosso acordar pode ser pouco convencional, mas é perfeitamente são.

Em torno do sexo, sabemos que uma preferência pode ser estatisticamente invulgar sem ser reprovável.

A nossa convicção interior de que as nossas particularidades são essencialmente razoáveis permite que nos apresentemos a outra pessoa sem medo ou de forma defensiva.

A nossa franqueza dá-nos o direito de pedir ao outro que revele – com semelhante honestidade – o que pode ser pessoal e difícil sobre si próprio.

Se eles insistirem que são realmente muito simples e ”fáceis”, podemos ser gentis mas firmemente cépticos.

Eles são humanos, e ser humano é ser complicado.

É impossível que eles não tenham imensas peculiaridades.

Raramente o problema com quaisquer parceiros potenciais passa por serem demasiado estranhos, mas em não aceitarem a sua especificidade ou não encontrarem uma linguagem que lhes permita apresentar-se aos outros de uma forma que possa ser plausivelmente compreendida e aceite.

Ser sincero nos encontros amorosos é um mecanismo para que duas pessoas não percam tempo – e para se pouparem à agonia no processo.

Devemos saber que uma superfície polida não é uma imagem verdadeira de uma pessoa.

Somente depois de esboçadas as nossas complexidades mútuas, podemos sentir, com enorme alívio, que estamos na presença de uma pessoa madura.

Teremos relações tão simples quanto desejamos, quando nos atrevermos a revelar e a acolher as complexidades reais da natureza humana.

 

Traduzido/adaptado por Pedro Martins

a partir de “Being honest on a date” – Alain de Botton

Déjà Vu - Pedro Martins Psicólogo Clínico Psicoterapeuta

Déjà Vu

Já vos sucedeu terem um “déjà vu”?

É aquela sensação obscura duma situação já conhecida.

Estamos num restaurante e algo ocorre exactamente como recordamos.

O mundo move-se como um bailado que coreografámos, mas a sequência não pode basear-se numa experiência do passado porque nunca entrámos neste restaurante antes.

Então, o que é que se passa?

Infelizmente, não há uma explicação única para o “déjà vu”.

A experiência é curta e ocorre sem avisar, tornando quase impossível um cientista registá-la e estudá-la.

Os cientistas só podem esperar que isso lhes aconteça a eles, o que pode demorar anos.

Não tem manifestações físicas e, nos estudos, é descrita pelo sujeito como uma sensação ou um sentimento.

Dada esta falta de provas sólidas, tem havido imensa especulação ao longo dos anos.

Desde que Émile Boirac introduziu o “déjà vu” como um termo francês que significa “já visto”, mais de 40 teorias tentam explicar este fenómeno.

Mas, os recentes progressos na neuro-imagiologia e na psicologia cognitiva reduzem o campo das hipóteses.

Vejamos três das teorias mais predominantes hoje, usando o mesmo cenário do restaurante para cada uma.

 

Teoria do Processamento Dual

Precisamos de uma ação.

Estamos no restaurante; o empregado escorrega e deixa cair a bandeja.

À medida que a cena ocorre, os nossos hemisférios cerebrais processam um turbilhão de informações:

Os braços agitados do empregado, o seu grito, o cheiro da comida.

Em milissegundos, estas informações entram por várias vias e são processadas num único momento.

Na maior parte das vezes, tudo é registado em sincronia.

 

Émile Boirac introduziu o “déjà vu” como um termo francês que significa “já visto”

 

Porém, esta teoria afirma que um “déjà vu” ocorre quando há uma leve demora nas informações de uma dessas vias.

A diferença nos tempos de chegada leva o cérebro a interpretar a última informação como um acontecimento em separado.

Quando se inscreve sobre o momento já registado, sentimos que já aconteceu antes porque, em certo sentido, aconteceu.

 

Teoria do Holograma

Esta teoria trata de uma confusão do passado em vez de um erro do presente.

Vamos imaginar a toalha de mesa do restaurante.

Quando observamos os quadrados da toalha, uma memória distante emerge da profundeza do cérebro.

Segundo esta teoria, isto acontece porque as memórias são guardadas sob a forma de hologramas.

Nos hologramas, basta um fragmento para vermos a imagem completa.

O cérebro identificou a toalha com uma do nosso passado, talvez da casa da nossa avó.

Mas, em vez de nos lembrarmos que a vimos em casa da avó, o cérebro foi buscar uma antiga memória sem a identificar.

Isso deixa-nos presos à familiaridade mas não à recordação.

Embora nunca tenhamos estado neste restaurante, vimos aquela toalha mas não conseguimos identificá-la.

 

Teoria da Atenção Dividida

A última teoria é a atenção dividida e afirma que o “déjà vu” ocorre quando o cérebro, subliminarmente, assume um ambiente, embora estejamos distraídos com um determinado objeto.

Quando a atenção regressa, é como se já lá tivéssemos estado antes.

Por exemplo, concentrámo-nos num garfo, e não observámos a toalha nem o empregado a deixar cair a bandeja.

Embora o cérebro estivesse a registar tudo na nossa visão periférica, estava a fazer isso para além duma atenção consciente.

Quando, por fim, nos distanciamos do garfo, pensamos que já lá tínhamos estado — e tínhamos — só que não estávamos a prestar atenção.

 

O “déjà vu” não tem manifestações físicas e é descrita pelo sujeito como uma sensação ou um sentimento.

 

Embora estas três teorias partilhem a característica comum do “déjà vu”, nenhuma delas se propõe ser a origem conclusiva do fenómeno.

Mas, enquanto aguardamos que os investigadores e inventores apareçam com novas formas de captar este momento esquivo, podemos estudar esse momento por nós mesmos.

Afinal, muitos estudos do “déjà vu” baseiam-se em relatos diretos, assim, porque não pode ser um dos nossos?

Quando tiverem um “déjà vu”, pensem nele durante algum tempo.

Estiveram distraídos?

Há algures um objeto conhecido?

O vosso cérebro está a agir lentamente?

Ou será outra coisa qualquer?

 

Michael Molina – TED-Ed lessons

Adaptação de Pedro martins a partir da tradução de Margarida Ferreira e revisão de Mafalda Ferreira

Do Domínio ao Abuso Narcisista Pedro Martins Psicólogo Clínico Psicoterapeuta

Do Domínio ao Abuso Narcisista

Mães-Filhas – Do Domínio ao Abuso Narcisista

Toda a mulher que alcança a condição de mãe vê-se confrontada com dois modelos de realização, que correspondem a aspirações geralmente contraditórias: ou mãe, ou mulher.

É verdade que estes dois modelos podem coexistir numa mesma pessoa, numa mesma identidade, num mesmo corpo.

Mas existem mulheres que se tornam quase exclusivamente mães, demitindo-se do seu papel de mulher.

A patologia do apego consiste em dar ao filho (bebé) todo o espaço, exercendo uma omnipotência sobre um ser totalmente dependente, exigindo em troca uma entrega igualmente infinita.

Ruth Klüger: “Só as crianças são mais dependentes que (algumas) as mulheres, é por isso que as mães são muitas vezes tão dependentes da dependência dos seus filhos em relação a elas.”

Devido à dependência total, embora transitória, os bebés de ambos os géneros esperam dedicação total da mãe.

Para a menina a mãe é também sua semelhante.

É por isso que a dependência originária não tem a mesma ressonância e não terá as mesmas consequências para cada um dos géneros.

Por esse mesma razão, observaremos esta questão, maioritariamente, na relação mãe-filha.

Nos primeiros meses de vida, a chegada de uma criança exige muito tempo e atenção, até mesmo uma certa abnegação.

Mas isso não é motivo para que uma mulher tenha por missão dedicar-se exclusivamente à filha, nem, sobretudo, obter a satisfação que deveria sentir ou reencontrar junto do parceiro.

Pelo contrário, muitas encontram a sua razão de viver na simbiose com a filha-espelho, tendo o pai sido reduzido, no melhor dos casos à transparência ou – no pior – à condição de obstáculo a ser removido.

 

O abuso narcisista é também um “abuso identitário” porquanto os filhos são despojados da sua própria identidade

 

Totalmente dedicada à filha – mas sobretudo através da filha, a si mesma e aos seus sonhos de grandeza – afasta-se do parceiro.

O lugar do pai junto da filha é inexistente pois a mãe apropriou-se da criança.

A filha é apenas o brinquedo passivo do abuso narcisista, o objecto indefeso do todo-poderoso amor devorador da mãe.

Protegido pelas virtudes da maternidade, e depois de ter “despachado” o pai, a mãe pode usar a criança para projectar nela as suas próprias fantasias de sucesso – glória e amor total – que ela não conseguiu realizar na sua vida de mulher.

Embora também exista domínio da mãe sobre o menino, é antes de tudo sobre a filha que ela se exerce, nas formas mais obscuras e mais arcaicas, chegando por vezes à violência.

Obrigação de conformidade aos modelos, depreciação do sexo feminino, imposição de segredos, culpabilizações e intrusões de toda a ordem são as formas mais visíveis – entre as quais, a confusão de identidades constitui provavelmente a forma mais subtil, mas também a mais perigosa.

 

A filha é o brinquedo passivo e indefeso do abuso do todo-poderoso amor devorador da mãe.

 

O “abuso narcisista” da criança pelos pais e, em particular, pela mãe, é a projecção do progenitor sobre a criança.

Os dons da criança são explorados, não para desenvolver os seus próprios recursos, mas para satisfazer as necessidades de gratificação dos pais.

Mas, se o abuso narcisista pode adoptar várias configurações:

– pai-filho, mãe-filho, pai-filha, mãe-filha – é no entanto esta última que assume as formas mais puras e devastadoras.

O abuso narcisista é também um “abuso identitário”, sendo que os filhos são colocados num lugar que não é o seu.

E, ao mesmo tempo, despojados da sua própria identidade justamente por aquela – a mãe – que tem a responsabilidade de ajudar a construí-la.

Sejam quais forem as causas, é muito provável que o resultado, para as meninas, seja a reprodução da insatisfação materna.

Pois o sobre-investimento pela mãe vem acompanhado de um défice de amor real, que a criança transforma em falta de auto-estima,

A insaciável busca de reconhecimento e necessidade de amor nunca é apaziguada.

 

(continuação no artigo: Conquistar o Amor da Mãe Narcisista)

Bibliografia: Meres-Filles ; Une Relation A Trois – Caroline Eliacheff e Nathalie Heinich

Conquistar o Amor da Mãe Narcisista - Pedro Martins Psicólogo Clínico Psicoterapeuta

Conquistar o Amor da Mãe Narcisista

A criança não para de multiplicar as suas proezas na tentativa de merecer pelos seus dons, o amor da mãe narcisista.

Mas este amor é sempre insatisfatório, já que nunca é dirigido para ela mesma, por ela mesma – mas apenas para aquilo que a filha representa, ou seja, a imagem idealizada da mãe.

O “dom” da criança resulta, pois, da sua capacidade, excepcionalmente desenvolvida, de responder às expectativas da mãe abusiva.

Essa insegurança afectiva, essa falta de amor engendra por sua vez uma fuga para a frente em performances cada vez mais elaboradas porque a criança nunca cessa de tentar merecer esse amor que jamais chega até ela, já que não lhe está destinado.

Por norma são adolescentes, muitas vezes brilhantes, mas sempre ávidas de satisfações narcisistas, alternando períodos de excitação e depressão, de hiperactividade e de passividade.

Sempre desejosas de agradar, mas geralmente pouco amadas, às vezes com distúrbios alimentares, e ao mesmo tempo preocupadas com as suas formas.

Afectivamente imaturas mas sexualmente experientes.

Este é o destino da menina quando a sua mãe, esquecida da sua própria identidade de mulher, a encarregou de realizar as suas aspirações no seu lugar.

O que ocorre com as mães “mais mães que mulheres” diante da autonomização das filhas?

As mães designadas de “possessivas” ou “fusionais” percebem o momento em que as filhas se vão emancipar e voltar-se para outras fontes de gratificação:

Primeiro as amigas e depois os homens, preencherão uma aspiração que a mãe, por mais amorosa que seja, não consegue satisfazer.

Pois a filha enquanto mulher, enquanto ser sexuado, já não é a filha criança.

É essa diferença que as mães têm dificuldade em admitir, isto é, integrar na relação, mesmo se, em teoria, elas o saibam muito bem.

 

A mãe tenta reter e a filha tenta sair. E desta saída depende a sua sobrevivência psíquica.

 

Excluídas da vida social e amorosa das filhas tentam adiar esse momento funesto separando-as do mundo.

Imiscuem-se nas relações das filhas e dessa forma manter o controlo sobre elas. Com a boa intenção, é claro, de não deixar a filha perder-se.

Também a filha vive dolorosamente a perda daquilo que era um encantador idílio.

Mas somente enquanto ela jogou o jogo, enquanto foi objecto passivo, o brinquedo consciente de uma mãe abismada na maternidade.

Agora a filha já não está na infância mas a escrever a sua história, e com necessidade de avançar a todo o custo. Cortar os laços e estabelecer outros.

É importante referir que existe o perigo de nos novos laços a filha da mãe narcisista recriar a fusão e a simbiose com o parceiro.

É muito difícil fazer o corte com esta mãe para se tornar mulher e muitas nunca o conseguem fazer na totalidade devido à falta de modelo.

 

Não basta crescer e tornar-se adulto para se libertar da relação com a mãe narcisista

 

Ou seja, estas mães só mostraram à filha o que é ser mãe mas ficou um vazio quanto ao ser mulher.

As que o conseguem não deixam de se debater com grandes sentimentos de culpa: “como é que se pode abandonar uma mãe que nos ama tanto?”

A culpa faz a sua parte: a filha renuncia a deixar a mãe e viver por conta própria, hipotecando a sua liberdade e as possibilidades de ser feliz.

Que enorme ingratidão seria deixar a mãe que tudo lhe deu e continua a viver só para ela!

Só uma filha desnaturada não reconhece a grandeza do amor da sua mãe.

A mãe tenta reter e a filha tenta sair. E desta saída depende a sua sobrevivência psíquica.

A filha empurra para o futuro, a mãe puxa para o passado.

Mas elas não estão numa posição simétrica no que diz respeito à fronteira entre a infância e a idade adulta, que é a adolescência.

A mãe tem a norma social que encoraja as mães a serem totalmente mães.

De modo que a filha tem contra si o peso da norma que ela internalizou em forma de amor pela sua mãe, de gratidão, de dependência, e quando procurou escapar, de culpa.

As posições não são, portanto, em nada simétricas: à consciência limpa da mãe corresponde a consciência pesada da filha.

Com efeito, não basta crescer e tornar-se adulto para se libertar da relação mãe-filha.

No pior dos casos a filha cede e renúncia à saída, pelo menos temporariamente.

No melhor, deixa de ser a criança-de-sua-mãe e realizará o seu destino de mulher.

 

Bibliografia: Meres-Filles ; Une Relation A Trois – Caroline Eliacheff e Nathalie Heinich

 

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